sexta-feira

Amanhã

Lá fora chove sem parar desde há muito tempo. Tanto que sou incapaz de saber dizer quanto. Está frio há ainda mais tempo. Muito frio. Por melhores amigos, os cobertores que fui descobrir no sótão, guardados ao fundo do armário da roupa que já não uso. Sei que grande parte do dia vou estar enroscada no sofá da sala. Olhos vidrados na imagem de uma televisão que já só faz ruído, barulho, nada mais me diz. Vou pouco a pouco esvaziando garrafas cheias de compaixão. Enfardo chocolate como se amanhã proibissem a importação deste poderoso analgésico do coração. É mais fácil induzir este estado em que não consigo absorver a realidade, em vez de ultrapassar aquela terrível barreira entre o saber o que seria a atitude correcta e tomar de facto com toda a força de vontade possível a decisão de a levar adiante.
Por mais que me obrigue a concentrar no pensamento de que sozinha sou completa, sou plena e feliz. Sabia que quando fosses embora ia olhar em volta e pensar na dimensão desta casa. Nota mental: de futuro, alugar apartamentos pequenos - é mais fácil manter a arrumação e a limpeza, e é mais simples preenchê-los, de objectos e de vida.
Agora tudo está longe. O escritório está longe. (As datas de entrega dos relatórios pendentes nem por isso...). A cozinha está longe. (Custa menos pegar no telefone e mandar vir comida pronta). A porta está longe. (Juro que por vezes quando me apercebo que é a minha campainha a tocar, já quem tocava desistiu que alguém fosse abrir). O quarto está longe. (E o teu odor no meu colchão continua teimosa e assustadoramente perto, apesar de ter mudado e lavado lençóis milhentas vezes desde que saíste e não voltaste).
Vou deixar-me estar só mais um dia no sofá. Pior não vou ficar. Melhor provavelmente também não. Amanhã talvez saia de casa. Quanto tempo será que pode dar-se a um desgosto, antes que ele nos domine de vez?! Acho que vou mandar vir chinês. Amanhã saio de casa.

1 comentário:

Maria Ana disse...

Amanhã. Pode ficar para amanhã.

(texto bonito)