quinta-feira

Vícios



Passei a viciar o acaso, quando quis fazer coincidir os meus cigarros à minha varanda com as horas de estudo do clarinetista vizinho à sua varanda. Eu à direita, ele à esquerda, no quarto andar do prédio mais velho do quarteirão. Tinta a cair, escadas de madeira que cheiram a mofo e há muito se despiram de verniz, elevadores que nunca funcionaram durante a minha singela existência. Depois das sete, quando já estava mais do que escura a noite, deixava o refogado a queimar durante alguns minutos, vestia um casaco para não enregelar os meus finos ossos, apagava a luz da cozinha e saía de mansinho para a varanda. Ficava de pé e braços meio cruzados, fazia argolas no ar. Fechava os olhos e via-o a ele. O muro que nos protegia da vista um do outro deixava descobrir as aladas notas de música e os dançantes fios de fumo em torno do seu som. Enrolavam-se a melodia e a nuvem, tocavam-se, beijavam-se, davam-se. Respiravam-se. Mas durava o tempo de um cigarro. E durava o tempo das moléculas de cheiro a refogado queimado viajarem até às minhas narinas e se confundirem com o cheiro do tabaco que me torna amarelos os dedos. Voltava a entrar, aquecia uma refeição congelada e comia, deprimida, com o clarinete por banda sonora do jantar mais só.

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