quarta-feira

Trigo limpo

O amarelo do sol a tocar o baixo horizonte confundia-se com o dourado do cabelo dela escondido pelo largo chapéu de palha que a coroava. Qual rainha da seara, mais que o brilho da cor do trigo a envolver o amarelo do sol e o dourado do teu cabelo, brilhava o teu sorriso, quando o abrias para ninguém, mas para toda a gente. Que nesses momentos toda a gente era mesmo só eu, nas minhas calças de ganga gastas e camisa branca velha. Pensava nessa altura que tinha muita sorte. Tu tinhas um vestido leve rosa pálido, pintalgado de florinhas vermelhas escuras. E no teu vestido leve, levemente pulavas entre as espigas. E colhias malmequeres que eu nem conseguia ver de onde saíam. O vento teimava uma e outra vez e outra ainda de seguida, um ondular suave sem fim na cor do trigo a perder de vista. Misturava-se com as ondas dos fios de ouro que caíam do teu chapéu, flutuantes.
Eu ficava ali, de pé. Ou então sentava-me. Contemplava essa tua estranha dança e invejava a forma como te fundias na paisagem. Não consigo dizer a dimensão da vontade que tinha de correr, pegar-te nos meus braços e levantar-te no ar. Não há maneira de dar a entender o tamanho do meu desejo de agarrar na tua cara com as minhas duas mãos e beijar-te a boca com força. Apertar-te contra mim. Ainda hoje não posso ter a certeza de que fosses real, sólida, de "carne e osso". Parecia que qualquer movimento que eu fizesse na tua direcção iria fazer com que te desvanecesses ali, sem esforço. Então deixava-me ficar imóvel. Naquele suster de respiração como que se me subisse o bater do coração pelo corpo acima e o descompasso acelerado se pudesse ouvir ao longe, na pausa do tempo entre o sonho e a descida à Terra.
Chegava-me, este ténue tocar-te sem que ninguém pudesse ver que te tocava. Sem que pudesses ver que te tocava. Sem que pudesses sentir o meu toque. Era um gesto despretensioso, cândido, limpo. Como o trigo que depois de levado se guardava, já separado. Era trigo limpo, o meu toque. Não haveria quem o censurasse, não tinha nada de condenável. Mas ainda assim acredito que apesar de todos os sinais indicarem que o não sentias, tu sabias que eu te tocava. E nessa divagação do meu ser, a tua essência ansiava a minha, tanto quanto a minha pela tua. Ainda hoje tento conduzir os meus sonhos nesse sentido. É uma espécie de conforto, de aconchego no peito. A fantasia da correspondência do meu amor, por ti. Hás-de pular para sempre pelas searas do meu imaginário, leve, doce, bela. Amada.

2 comentários:

Cat disse...

adoro como consegues dizer tudo sem na verdade o dizer. . só imaginando. . as tuas palavras são isso . . um passaporte para a imaginação. . adoro as imagens que crias e que nos levam daqui. .

Deixas.me um grande desafio para a tua fita !

adoro.te Joana Ofélia !

Zé disse...

é a beleza do teu encanto!