sexta-feira

Realidades paralelas

Realidades paralelas, fantasias simultâneas. Ou desvarios da mente, lembranças, uma intercepção de vidas passadas, diferentes, longínquas em natureza e no tempo. Alturas passamos, ou instantes apenas, talvez pequenos intervalos durante os quais é complicado discernir, definir o que pensamos, o que sentimos. Decidi sem grande ponderação que tinha de escrever sobre isto. Porque ao olhar para o caminho através do qual andei, reparei de novo que todo ele era lama cheia de poças moldadas pela passagem de gente, e rastos de pessoas e pegadas de animais. Depois, pensei que mais do que nós marcarmos o caminho, é o caminho que não nos deixa nunca, uma vez percorrido. A expressão dita para trás das costas é muito estranha de se dizer. Ou sou eu que terei uma forma esquisita de a sentir. Ou (mais provável será que) toda a gente a sinta igual, mas faça por não o dizer. Hoje esse caminho desapareceu. Permanecem apenas, a esforço de algumas pessoas, os sobreiros centenários que o ladeavam. Dilacerado, enterrado, tapado com alcatrão. Quem não o conheceu, não conhecerá. Quem o conheceu, não o reconhecerá quando por ele voltar a passar. Os sobreiros fazem hoje e pelos dias fora sombra a outras aventuras. Outras pessoas vaguearão debaixo deles. Outros rumos, outros destinos. Vento quente na camisa leve e solta, sol e sorriso na cara. O som das gargalhadas, a terra nos pés e os pés nos pedais. As rodas em grande velocidade, numa bicicleta voadora, máquina do tempo e elevador até ao espaço, até onde se quisesse. A luz cálida dos momentos em que esperávamos que se pusesse o sol, bela, entrava onde conseguia, passava pelas pequenas folhas que numerosas cobriam os ramos fartos daquelas árvores tão imponentes. Os teus olhos castanhos ficavam ainda mais suaves, e mais profundos e escuros e sombrios. Parecias olhar o vazio, qualquer pessoa diria que olhavas o vazio. Eu saberia porém dizer o que olhavas. Tempos perdidos, horas distantes, coisas que não sabias explicar. Mas que vias com maior ou menor nitidez. Nunca à frente dos teus olhos, sempre atrás. Fugiam atrás umas das outras, memórias de momentos e pormenores que nunca viveste. Mas que, magicamente, possuías. Eram propriedade tua, eram reais, tinham lugar em ti. Não quero nem ousarei nunca chamar-lhes imaginação. Ficava deliciado a olhar para ti quando assim ficavas a fitar um ponto ao acaso. E, através dos teus olhos, via um fio sem fim de imagens que se sucediam agora não na tua cabeça, mas na minha. E, maravilhado, não tentava sequer compreender. É, és um maravilhoso mistério. Feito de fartas e bonitas saias, saiotes e cetim. Tranças e apanhados com flores e coroas e fitas brancas e cor-de-rosa no cabelo. A tua cara branca, lábios de cereja madura, doce, doce. Naquele caminho, cheio de lama e de raios de sol de fim de tarde e ladeado de cerca de madeira e sobreiros alinhados, a separar olivais a perder de vista, e a erva rija e alta que deles saltava, rebelde.

domingo

Fantasmas

 Penso que pensarei um pouco por toda a gente, quando por razão aparentemente inexistente me assalta a mente um episódio mais inglório de entre aqueles que já vivi. Tenho até alguns acontecimentos de estimação que me revisitam sem quererem desaparecer. Teimosos despropósitos, disparates, desequilíbrios, e tão simples azares. Ridículos vergonhas e embaraços, casos desprovidos de todo a sensação de orgulho que pudessem despertar. Quanto mais esforço recebem para partir, com mais força ficam. São coisas pequenas, sem importância. Porque permanecem? Terão um significado profundo por trás da sua insignificância? Valerá a pena insistir na lembrança, valerá ainda mais dissecá-la em busca de um sentido maior, disfarçadamente oculto, potencialmente crucial? Que faria então os fantasmas maiores, e os fantasmas reis do nosso passado... Erros ditados incorrigíveis pelo tempo que não pára e pelas cartas que não voltam ao baralho antes de se darem as mãos e o fim do jogo. Arrependimentos, remorsos guardados, mágoas choradas até à exaustão do adormecer para acordar frente a um espelho que mostra apenas uns olhos mais inchados que os do dia anterior. Contas feitas, provavelmente o melhor é mesmo continuar a tentar dar-lhes menos e menos atenção. Pessoas assombradas não vivem felizes. Talvez o empenho na tentativa da ignorância vá atenuando o efeito do assombro. Quando damos por nós, já temos um fantasma diferente. E o anterior ficou há muito para trás. Muito mais leve. Cada vez menos assustador, muito menos importante. E a maior desgraça dilui-se em partículas tão ténues quão flexível se torna a nossa atitude perante o que representam. E assim se ultrapassavam dissabores e se assustam fantasmas. Parece tão simples, no fim, que devia ser proibido dizê-lo em voz alta.

sábado

Mala de viagem

Se eu fosse como o vento, não passava por nenhum lugar igual ao anterior. Daria voltas e voltas, em que o mundo esticaria sempre mais além de onde acabava e eu nunca lhe veria o fim. Não reconheceria o rosto de ninguém em quem tocasse. Não passaria de um vaguear perdido, alheado. Sem origem, sem destino. Sem caminho, nem mapa. Não sei onde passo nem o que vejo. Tudo é sempre novo para mim. Levaria uma capa e capuz, para poder proteger-me da intempérie e do sol, umas botas, para pisar as pedras e as ervas e as poças do chão, e uma mala cheia de nada, para poder encher com tudo. Precisaria de muito espaço, para apanhar o que o acaso me trouxesse à mão. Guardaria tudo com carinho. Não deixaria nada para trás. Sem origem, sem destino, sem caminho sequer, tudo o que encontrasse seria o que me tornaria a mim e à minha existência importante, faria valer a pena. É tão belo assim viver o mundo. Não há amarras que me prendam quando estico o corpo e subo no ar, e, sempre que viro uma esquina ou alcanço uma cerca, encontro novidade e mistério. Espero nunca perder a mala. Gosto de a abrir de vez em quando. Forçar a mente, ainda que sem grande sucesso, a revisitar cada lugar. Gosto de sorrir e dar as mãos às memórias que ela encerra. As essências perdidas no tempo que já passou, que não volta. Essas, quero-as para sempre.

Maleável ou nem tanto

Dentro da flexibilidade, há alturas em que se sente uma rigidez que parece ser só nossa, estranha, de outro mundo... No fundo, aos olhos dos outros parece-nos a nós que somos mesmo extraterrestres a desejar algo completamente fora do alcance humano, totalmente descabido, desprovido de razão de ser, por ser tão inatingível, tão utópico. Acabo a sentir-me mal de cada vez que me contenho e não digo a alguém conhecido que devia deitar a beata no cinzeiro ou no lixo em vez de, descontraidamente, a pisar no chão ou enterrar na areia da praia. Visito alguém e deito embalagens de plástico, objectos em cartão ou garrafas de vidro no lixo comum por não se separar os resíduos naquela casa. Desço de elevador para agradar a quem sai de casa comigo e apanho o metro em vez de andar a pé e chegar mais depressa à faculdade. Guardo no quarto escondidas as bolachinhas para molhar no leite à noite antes de ir dormir, para evitar que desapareçam na goela do indivíduo mais guloso cá de casa. Aguento quem fala por cima dos outros, quem conversa nas aulas como se estivesse na esplanada da esquina. Calo-me em vez de corrigir um erro de ortografia gritante. São apenas alguns dos exemplos que de repente me assaltam. Às vezes sinto-me tão intolerante.

Nevoeiro e perlimpimpim

Há quem na cabeça tenha não mais do que farinha espalhada por um sopro de crianças traquinas, calda de açúcar e pintarolas de muitas cores. Serpentinas e fitas de Carnaval, purpurina, tules e varinhas que tudo fazem acontecer. Estrelas e coisas brilhantes, torres de castelos com janelas pequenas no alto, dragões e espadas e fadas e luz. E fogo. E dentes afiados e monstros gelatinosos. Foguetões e trapézios e narizes vermelhos. Orelhas bicudas e bochechas rosadas. Asas e penas e caudas compridas. Hoje sou assim. Amanhã não sei que serei. Ontem já passou. Fui à Lua, salvei o Mundo. Hoje corro em câmara lenta à frente dos meus olhos na pele de outro ser pequenino. Com os joelhos esfolados, as mãos cheias de terra e expressão de quem sabe que não engana ninguém, mas e então? Hoje, é pecado sentir-me ainda assim? Porque parece a todo o momento que está alguém a olhar para (por) mim pronto a censurar-me (amparar-me)? Grilinhos que falam de mãos em concha à volta da boca para dentro dos nossos ouvidos, irritados. É quando se cai de cu no chão e o sorriso malandro vira pranto ao vento e tudo perde nitidez. A fantasia enrola-se no ar em fumos de tons azuis, roxos, rosa e prateados, pelo caminho adiante par a par com o real. Vejo os meus pés um à frente do outro, mas não vejo o caminho. Brumas e escuro e minúsculas gotas de água suspensas em redor dos corpos. E frio. Não somos capazes de perceber a fronteira, ou sequer de ultrapassá-la. Não podemos alhear-nos para sempre, nem voltar para trás, a estrada que conhecemos já não existe. Devia haver uma solução mais óbvia para os dias de nevoeiro.

O frio ainda vem longe


Há folhas no chão, há correria de pessoas, há casacos assim-assim. A romãzeira já tem fruto e já comemos batatas doces. Há cogumelos a crescer no jardim e quem come as uvas são os insectos lá fora. As laranjas ainda estão verdes, assim como os ouriços das castanhas. Já tirámos as mantas do armário e trocámos o cobertor leve pelo edredão. Mas ainda não há terra molhada, nem névoa matinal que se veja, ainda não cheira a lenha nem se ouve o crepitar do lume na lareira. À noite fazem 17 ºC e de dia, ao sol, tenho vontade de despir a camisola. O frio ainda vem longe.
De qualquer forma, as folhas que caem uma a uma ou mais de uma vez hão-de amontoar-se, as pessoas hão-de correr cada vez mais depressa para o conforto do interior de cada casa, e os casacos dia a dia hão-de pesar cada vez mais nos ombros de cada um. Podemos adivinhar o cheiro das laranjas melhor a cada dia que elas ganham mais um pouco de cor. Para quem quiser há já castanhas à venda no mercado, hão-de vir a pouco e pouco acompanhar as batatas doces na cozinha lá em baixo. Com a luz do fogo chega também a água a ferver da botija para aquecer quem não consegue dormir de pés mais e mais gelados. Cada sol que nasce traz manhãs menos quentes e cada lua que desce leva mais do entusiasmo do sol. As coisas verdes ficam cor-de-laranja e vermelhas e amarelas e castanhas e pretas. E morrem. Outras nascem.
Assim, devagarinho, quase sem darmos conta. Eis que ele vem. O frio ainda vem longe. Mas vem. Preparemo-nos, então.

Algo desencantado do fundo da gaveta II

Estou cheia. Continua a faltar quem me fará transbordar. Ingrata? Egoísta? Parva? Deprimente... Olhas à volta e vês tudo. Olhas para dentro e vês nada. Fugir? Não fujas, corre! Não és capaz de sair do sítio. Esse leito de sal agrada-te, o teu prazer de não sorrir, o teu prazer de gritar, o teu prazer de agonia. És deprimente. Admite-o. E vive para sempre no teu mar sem ondas e sem barcos e na tua praia com pegadas de ninguém.

"Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não."

(José Saramago, in Memorial do Convento)

sexta-feira

Sensação do espaço e do tempo

Os cortinados daquela janela, apesar de compridos, estão curtos, não chegam ao chão. Parece que têm a saia arregaçada. Como eu quando, contigo e as tuas calças arregaçadas também, saltava por cima das pedras escorregadias, verdes, brilhantes de musgo e algas e vida. Para atravessar até à outra margem. Quando perdi o equilíbrio caí e levei-te comigo, mãos dadas. A saia que se enrolava em mim e em ti molhada e as voltas que dávamos em torno de nós. Eram as voltas que os cortinados davam em nossa volta. Perdidos pelo chão, encontrámo-nos e perdemo-nos um ao outro. Ficámos tantas vezes deitados, calados, olhos no céu. Muitas vezes a sensação de se estar próximo é mais forte quando se está longe. Quando se está perto, a proximidade perde-se, é tão fácil tocar-se e ver-se e ouvir-se e cheirar. A facilidade torna tudo isto menos valioso. A distância aumenta a vontade de retornar, de correr, de ter. Como o potencial electroquímico na origem dos processos fisiológicos na base do desenrolar da vida dos corpos. É a distância que nos faz querer tomar os corpos dos outros nos nossos braços. Uma vez nos nossos braços, parece não ter tanta importância o tempo que neles ficam. É sempre mais importante que fiquem mais tempo, quando esse tempo não está a acontecer agora. Eu, porém, mal te toco, já está a minha ideia na ideia de estares a descer no elevador, com a mochila às costas e com a cabeça no que vais fazer a seguir. Mal te tenho, no instante imediatamente seguinte para mim já estás a partir, já me sinto longe outra vez e ainda não me deixaste. Antecipo o último beijo, desde o primeiro que me dás. Vai, vai embora. Vai, que um dia vai parecer que nunca vieste. Vai parecer que nunca aqui estiveste. Se esse dia for tão doloroso como pressinto…

domingo

Setembro


Setembro, como não podia deixar de ser. O ar cheira aos plátanos que deitam folhas mortas pelo chão, o mesmo cheiro dos tacos de madeira do chão das salas de aula da escola primária. Os pés levam o cheiro pelos caminhos que se levantam e retomam o curso normal. E os braços balançam para a frente e para trás, a lado do corpo obrigado a funcionar, distraído de si.
A manhã e a noite ficaram frias de repente, como os meus pés e as minhas mãos. Ficam assim quando o sol escasseia. Quis fechar os olhos, atrasar a rota das coisas, prolongar o dia. É sempre em vão. É preciso, antes de abrir a porta e sair, respirar fundo e concentrar a ideia em algo mais longe. Pensar no passo seguinte ao que de momento dou, fugir. Agarrar com força o ar à medida que o trespasso, para me apoiar em direcção a não sei onde, nem o quê.
Meia estação, meio gás, semi-consciência. Adormecimento torpe, em jeito de preparação para o tempo adverso. Mais um dia, mais um empurrão no que há-de vir e mudar o que não pode continuar igual.

quarta-feira

Acaso


Certa manhã, o sol espreitou entre o tecido ondulante da cortina e bateu na sua cara branca. Abriu-lhe os olhos, fê-la bocejar e esticar o corpo. Afastou a roupa e levantou-a da cama. Calçou-lhe os chinelos e pôs-lhe um roupão. Dirigiu-a ao andar de baixo, onde abriu as portas que dão para a varanda e lhe indicou que saísse. Ficou assim, braços estendidos apoiados com as mãos no parapeito ainda frio da noite, queixo erguido, nariz aberto e olhos fechados. Inspirou o dia que começava. Percorreu mentalmente o encadeamento de ideias que defendia em relação à existência do ser. Sussurrou um agradecimento ao acaso que tudo proporcionava. E voltou para dentro, lavou-se, vestiu-se, comeu. Saiu de casa como toda a gente. Trabalhou e divertiu-se. À noite, quando chegou, repetiu o estranho ritual. Depois deitou-se na cama forrada de linho lavado e fresco. Fechou os olhos debaixo dos raios de luar que entravam entre o tecido ondulante da cortina. E esperou, na certeza de não precisar dele, o dia que voltaria a nascer.

terça-feira

Entre!


Quando dou por mim sozinha, é como se estivesse sempre à tua espera. Sonho acordada com episódios em que entras pela porta adentro de surpresa.

      ( - Entre!)

Imagino a sensação de imprevisto que me assaltaria, me deixaria gaga nos reflexos, sem saber bem que dizer. Invento as palavras que trocaríamos numa situação em que isso acontecesse. Crio os gestos que cortariam o ar, parado antes de chegares. Aproximar-te-ias, tentarias alcançar-me a mão, talvez abraçar-me, provavelmente oferecer-me um beijo. Eu, derretida, todo o meu corpo esboçaria o seu sorriso, tímido.

      ( - Fica.)

Antes de avançar no enredo, já partiste. De novo. Dentro da minha cabeça já se desvaneceram estas ideias e se formaram outras, nuvens, flutuantes atrás dos meus olhos. Abertos mas fechados.
Oh, como sinto a tua ausência! Tanto como a tua presença, ela dilacera-me a existência. Afasta-me do que é real. Deixa-me assim alheada, incapaz. Rosto cerrado. Inspiro e mantenho o ar dentro dos pulmões, para parar o tempo um bocadinho. Puxo facilmente a memória do teu aroma. Rapidamente me vejo, uma vez mais, enleada em ti. Abandono-me e deixo-me ficar tanto tempo quanto conseguir. Sabe bem saborear-te.

segunda-feira

Mergulhar de cabeça


Quando era pequena eram muitos primos todos em casa dos avós no Verão. Era tão fácil descer a rua e pisar a areia a escaldar, saltar até ao mar e ficar assim o resto do dia. Até que nos chamassem para lembrar que sem comer não se consegue correr, e eventualmente toda a gente precisa de dormir. O areal permanecia praticamente deserto, ainda. E era então que o rochedo parecia mais alto. Ignorava-se muitas regras, mas aquela talvez fosse a mais perigosa para se desobedecer. Faziam fila para saltar, sem pensar se a profundidade seria suficiente naquele local, ou sequer se o mar não estaria agitado demais naquele dia. Era bom sentir aqueles escassos instantes de liberdade pura, em que se era capaz de voar. Gritava-se ao vento e às gaivotas, que já não estavam em posição de se invejar, já tinham sido superados. Aves no ar, peixes na água. Três meses que enquanto não acabavam, duravam para sempre. Havia sempre tempo para mais um mergulho, mais uma corrida, mais uma brincadeira.
Crescemos e ao mesmo tempo que ganhamos a noção da altura do rochedo, perdemos a coragem necessária ao salto. Ficamos limitados à prisão dos pés juntos, pernas flectidas, costas curvas, braços para a frente ao lado da cabeça e respiração sustida, sem conseguir dar o balanço que nos projecta azul após azul. Hoje, estamos de pé na rocha, já nem nos curvamos numa tentativa frustrada de quem ainda pensa ser capaz. Eventualmente, um dia sentar-nos-emos em círculo, contando histórias das vidas entre Verões. Nunca estaremos tão alto como nesse dia. O dia em que, de tão grande a altura, será maior o medo de cair.

sexta-feira

Feto


Quiçá tudo na vida surge lenta e cuidadosamente como o desabrochar das folhas dos fetos. Um movimento gracioso, qual passo demorado num bailado. Será tão só uma questão de perspectiva. O intervalo que decorre do nascimento à morte de um ser varia grandemente consoante o ser que se considerar. Em momentos de aflição tudo parece passar à frente dos olhos em câmara lenta. Por outro lado, quando mais nos apetece estender os minutos, eis que é aí que eles mais correm para fugir. As escalas de tempo são tão relativas...

Amanhã

Lá fora chove sem parar desde há muito tempo. Tanto que sou incapaz de saber dizer quanto. Está frio há ainda mais tempo. Muito frio. Por melhores amigos, os cobertores que fui descobrir no sótão, guardados ao fundo do armário da roupa que já não uso. Sei que grande parte do dia vou estar enroscada no sofá da sala. Olhos vidrados na imagem de uma televisão que já só faz ruído, barulho, nada mais me diz. Vou pouco a pouco esvaziando garrafas cheias de compaixão. Enfardo chocolate como se amanhã proibissem a importação deste poderoso analgésico do coração. É mais fácil induzir este estado em que não consigo absorver a realidade, em vez de ultrapassar aquela terrível barreira entre o saber o que seria a atitude correcta e tomar de facto com toda a força de vontade possível a decisão de a levar adiante.
Por mais que me obrigue a concentrar no pensamento de que sozinha sou completa, sou plena e feliz. Sabia que quando fosses embora ia olhar em volta e pensar na dimensão desta casa. Nota mental: de futuro, alugar apartamentos pequenos - é mais fácil manter a arrumação e a limpeza, e é mais simples preenchê-los, de objectos e de vida.
Agora tudo está longe. O escritório está longe. (As datas de entrega dos relatórios pendentes nem por isso...). A cozinha está longe. (Custa menos pegar no telefone e mandar vir comida pronta). A porta está longe. (Juro que por vezes quando me apercebo que é a minha campainha a tocar, já quem tocava desistiu que alguém fosse abrir). O quarto está longe. (E o teu odor no meu colchão continua teimosa e assustadoramente perto, apesar de ter mudado e lavado lençóis milhentas vezes desde que saíste e não voltaste).
Vou deixar-me estar só mais um dia no sofá. Pior não vou ficar. Melhor provavelmente também não. Amanhã talvez saia de casa. Quanto tempo será que pode dar-se a um desgosto, antes que ele nos domine de vez?! Acho que vou mandar vir chinês. Amanhã saio de casa.

sábado

Doce de ovos

O doce de ovos evoca em mim a memória da croissanterie e o cheiro da massa a cozer no forno. As conversas animadas e as gargalhadas entre amigos à volta das mesinhas de tampo de pedra nas cadeiras de metal vermelhas. Mesmo que o quotidiano esteja repleto de pequenos gestos doces, estamos sempre a exigir mais e mais do que e de quem nos rodeia. A velha história do quanto mais tens, mais queres ter. Por isso, e como a cozinha é sempre uma grande ajuda terapêutica... Bata quatro gemas com duzentos e vinte e cinco gramas de açúcar; ferva uma chávena de chá de leite num tacho; junte as gemas com o açúcar ao leite e mexa sem parar; quando começar a espessar estará pronto. Este pode ser o ponto de partida para um bolo que precisa de recheio, ou para uns crepes que precisam de ânimo. Para uma viagem de fechar os olhos, inspirar e recordar momentos distantes cheios de açúcar.

sexta-feira

Mais vale voar com os pássaros

Mais vale voar com os pássaros, do que ver dois pássaros a voar, ou mesmo ter um pássaro na mão.

quinta-feira

Vai andando

Vai andando, vai andando... Quase, quase a chegar! A sensação de plenitude da tarefa concluída tarda em vir. Há uma arte que é uma mescla de preguiça, falta de vontade e desleixo, cuja primeira regra (e última, talvez) se resume ao deixar andar até que não possas mesmo ignorar o que tens que fazer. Irresponsabilidade? Não a queremos encarar assim... Não, nós temos sempre tudo controlado, há tempo! Há sempre tempo. Até ele começar a escassear. Incompetência? Longe de nós! Não se vê que vai tudo estar pronto a horas?! Pensamos que provavelmente a aversão a dar a coisa por terminada tem mais a ver com o facto desta não se incluir na nossa área de preferências. Talvez seja até muito desprovida de interesse, no geral. Acabamos por concluir que passamos mais tempo a procurar desculpas e argumentos para nos lamentarmos, do que propriamente a despachar o penoso encargo, para que o vejamos atirado para trás das costas.  E acabamos a arrastar o que podíamos bem já ter dado por terminado há muito, e a ver as horas de sono diminuírem com a aproximação da deadline a cumprir. E até ao limite, tem de haver sempre alguém a perguntar "Então, como vai isso?". Vai andando...

sábado

A caixa da costura

Há objectos que me fascinam. E um deles é a caixa da costura. Dedais, carrinhos de linhas de tantas cores e mais algumas, agulhas, alfinetes. De todo o conteúdo, o que mais me atrai é o cantinho dos botões. Uma miscelânea de cores, feitios, tamanhos. À primeira vista, parecem todos diferentes. A custo, entre tantas peças, encontramos pares, às vezes trios, quem sabe conjuntos maiores do mesmo botão. Uns brilhantes, outros baços e velhos. Um ou outro partido, outro apenas rachado. Fazem lembrar indivíduos habitantes de um mesmo local comum. Servem todos o mesmo propósito. Pretendem encontrar uma casa, pertencer a algo maior, não ficar sozinhos. Querem ver mais lugares além da caixa da costura que conhecem. E querem encontrar outros botões, diferentes daqueles com que já tiveram oportunidade de privar. Mais tarde ou mais cedo, hão-de voltar todos àquela caixinha dentro de uma caixa maior. Talvez tenham caído, poderão precisar apenas de mais força, com linha nova apertada. Quando já não servirem, ou simplesmente quando tiverem passado de moda. Mais tarde, pode ser que alguém volte a lembrar-se deles. A moda tem sempre aquela tendência de revisitar tempos passados. E torna o velho a ter alguma graça. De toda a tralha que há dentro da caixa de costura, é dos botões que eu gosto mais. Remexê-los entre os dedos. Hei-de aprender a costurar, que a coser botões já me ajeito.

quarta-feira

Trigo limpo

O amarelo do sol a tocar o baixo horizonte confundia-se com o dourado do cabelo dela escondido pelo largo chapéu de palha que a coroava. Qual rainha da seara, mais que o brilho da cor do trigo a envolver o amarelo do sol e o dourado do teu cabelo, brilhava o teu sorriso, quando o abrias para ninguém, mas para toda a gente. Que nesses momentos toda a gente era mesmo só eu, nas minhas calças de ganga gastas e camisa branca velha. Pensava nessa altura que tinha muita sorte. Tu tinhas um vestido leve rosa pálido, pintalgado de florinhas vermelhas escuras. E no teu vestido leve, levemente pulavas entre as espigas. E colhias malmequeres que eu nem conseguia ver de onde saíam. O vento teimava uma e outra vez e outra ainda de seguida, um ondular suave sem fim na cor do trigo a perder de vista. Misturava-se com as ondas dos fios de ouro que caíam do teu chapéu, flutuantes.
Eu ficava ali, de pé. Ou então sentava-me. Contemplava essa tua estranha dança e invejava a forma como te fundias na paisagem. Não consigo dizer a dimensão da vontade que tinha de correr, pegar-te nos meus braços e levantar-te no ar. Não há maneira de dar a entender o tamanho do meu desejo de agarrar na tua cara com as minhas duas mãos e beijar-te a boca com força. Apertar-te contra mim. Ainda hoje não posso ter a certeza de que fosses real, sólida, de "carne e osso". Parecia que qualquer movimento que eu fizesse na tua direcção iria fazer com que te desvanecesses ali, sem esforço. Então deixava-me ficar imóvel. Naquele suster de respiração como que se me subisse o bater do coração pelo corpo acima e o descompasso acelerado se pudesse ouvir ao longe, na pausa do tempo entre o sonho e a descida à Terra.
Chegava-me, este ténue tocar-te sem que ninguém pudesse ver que te tocava. Sem que pudesses ver que te tocava. Sem que pudesses sentir o meu toque. Era um gesto despretensioso, cândido, limpo. Como o trigo que depois de levado se guardava, já separado. Era trigo limpo, o meu toque. Não haveria quem o censurasse, não tinha nada de condenável. Mas ainda assim acredito que apesar de todos os sinais indicarem que o não sentias, tu sabias que eu te tocava. E nessa divagação do meu ser, a tua essência ansiava a minha, tanto quanto a minha pela tua. Ainda hoje tento conduzir os meus sonhos nesse sentido. É uma espécie de conforto, de aconchego no peito. A fantasia da correspondência do meu amor, por ti. Hás-de pular para sempre pelas searas do meu imaginário, leve, doce, bela. Amada.

sábado

Contos de fadas

De finais felizes. A grande indefinição do que vem depois da aventura. E se a vida não for uma aventura, como nos contos de fadas? E se tiver que ser apenas o final? Deixemos de lhe chamar final... passa a ser o quê? O meio? Vida de meios felizes. Não soa nada bem.
E se dividirmos a vida em vidas pequenas? Na medida em que a nossa vida não seja só uma, sejam várias vidas que se entrelaçam com a nossa. E assim, já podemos falar de aventuras? Cada entrelaçada uma aventura. O que será um final feliz então?...
Como é que se prolonga uma aventura? Como é que se adia um final, quando o meio é tão feliz? Como é que não se deixam fugir as borboletas na barriga, a qualquer coisa entalada na garganta, o arrepio espinha acima, a sensação de queda livre, a censura da maneira como nos apresentamos, do que dizemos, de como estamos, do que fazemos?
Era fechar os olhos e parar o tempo e parar o sangue de correr pelas veias e artérias, congelado, tão frio. Coisa assim não pode ser boa. Fria, gelada. Vazia de vida. Já não seria vida, então. Já não seria aventura também. Na tentativa de prolongar a aventura, acabaríamos com ela de uma vez, ainda antes do tempo dela acabar se não tivéssemos tentado intervir no curso natural das coisas.
Sim, felizes ou não, há sempre finais. E de uma maneira ou de outra, mais ou menos dolorosa, acabam por ser para o nosso bem.

Algumas vezes, o final afinal ainda vem relativamente longe... e podemos descansar e deleitar-nos mais um pouco no quentinho do meio da aventura.

domingo

Estrada

Fizémo-nos à estrada, como sempre, atrasados. Bastante atrasados. É todas as vezes a mesma coisa, por mais cedo que a mãe nos acorde, por mais rápido que se arrumem as malas no carro. Não consigo perceber onde raio enfiamos nós o tempo! É assim, quando viajamos. Que correria...
Adoro a viagem. Gosto mesmo. Há sempre tempo para tudo, especialmente se não for eu a conduzir. Dormitar um bocadinho, em jeito de pedido de desculpas a um corpo cansado que nesse dia tem autorização para dormir bem menos que o costume. Estender a vista por montes, vales e planícies. Cumprimentar pessoas que passam na rua, e animais que vagueiam pelas pastagens. Cantarolar músicas que passam na rádio, cujas letras é incrível nunca sabermos por completo, de tão ouvidas que estão. Tentar sem sucesso fotografar o que passa ao nosso lado a alguma velocidade, a suficiente para nos fugir à lente.
Chegamos e é mágico, reencontrar quem está longe a maior parte do tempo. E questionamo-nos "por que é que não telefono mais vezes?!"
Antes de encontrar uma resposta entre mil pensamentos, ocupações e preocupações que povoam a minha mente, o tempo já passou o suficiente para estarmos de partida. "Devíamos ter tirado mais fotografias todos juntos." Mais do que em qualquer momento que possa assaltar o nosso dia-a-dia, é aí que nos apercebemos de toda a fragilidade da distância. Voltamo-nos para trás no banco e acenamos um adeus até o carro ter contornado a esquina da rua. Um adeus que é eterno, até ao nosso regresso. Um sorriso que tem cheirinho a lágrimas, do momento emocionado com a grandeza dos laços. Ainda bem que a estrada faz parte da vida. Ainda bem que o destino também.

sexta-feira

Fim de tarde, início de outro caminho


Era ao fim da tarde que ela gostava de se sentar no baloiço pendurado no salgueiro-chorão ao fundo do terreno da casa da avó. Protegida pela sebe densa que a separava da vista dos primos e outros que por lá andassem, Amélia saboreava a baixa luz de sábado. Mais balanço, menos balanço... Fechava os olhos, ouvia os grilos, as cigarras, o zumbido de mosquitinhos e o barulho das asas das libelinhas que pousavam nas margens molhadas do charco. Uma ou outra vez, o coachar tímido de algum batráquio que a observava, intrigado. Abria os olhos, pirilampos a piscar descreviam voltas em volta dos juncos e escondiam-se atrás das flores fechadas, preparadas para uma noite de sono. Imaginava no ar a tracejado as espirais das trajectórias dos insectos que lhe faziam companhia. Inspirava o calor que a abraçava. Aquele Verão seria um dos melhores. Amélia, amiga do sossego. Precisava sempre daqueles momentos de calmaria, recuperar das brincadeiras que nunca querem acabar. "Só mais um bocadinho, avó, ainda não está escuro", "Vá lá, meninos, ainda têm de tomar banho antes do jantar". Fim de tarde, final do Verão. Início de um outro caminho. Amélia meditava, pensamento em torno do que em pouco tempo a esperava. "Nunca fui dada a aventuras". Não precisava de o dizer em voz alta, já estava assustada que bastasse. Amélia, amiga do conforto de se conhecer finalmente a si própria. Prestes a deparar-se com a angústia de se desconhecer outra vez. Para a frente, para trás... "Chega de lamúrias! Arregaça as mangas, Amélia". Então Amélia saltava do seu baloiço, e corria para dentro de casa. "Amélia, despacha-te! Já estão todos prontos para se sentarem à mesa, os teus pais não tarda estão a chegar". Adeus, baloiço, até um dia. Doce sensação de aconchego que se dá por terminada. "Arregaça as mangas!"
Hoje, tão longe aquela tábua de madeira suspensa daquela árvore por cordas enfraquecidas pelo tempo. Ao mesmo tempo tão perto, Amélia ouve ainda ao longe as gargalhadas dos outros miúdos, os ralhetes fingidamente zangados da avó. O cheiro a verde, a Lua que cai. Sossego que nunca volta, é para sempre um sentimento de saudade de nos sentarmos no agasalho que é sabermos que começamos num sítio e acabamos noutro, somos a nossa cabeça, tronco e membros, e essa cabeça não tem tantos recantos sombrios assim. Hoje, todos os dias são início do caminho e essa cabeça parece cada vez mais contorcida em labirintos cheios de nem se sabe o quê. E que o caminho continue.

sábado

Algo desencantado do fundo da gaveta

O que resta da fogueira na praia. A manta na areia. O marejar. O vai e vem de cada onda. A areia molhada debaixo de mim. O céu a clarear, alaranjado, por detrás do rochedo, preto da noite. A gaivota que chamava alguém. As estrelas que teimavam em espreitar o dia. A lua que não queria ir embora. O ar gelado na minha cara. O sal de água que não era do mar mas de mim. A falta da tua força em minha volta. Fazes-me tanta falta. O teu sorriso. A tua presença. O teu cheiro. Os teus olhos dentro dos meus. Os teus braços colados a mim. As tuas mãos. Tu.
Miserável memória que “teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar”. Miserável memória que me faz sonhar contigo muitas vezes. Miserável memória que teima em ficar. Miserável memória que guardo com tanta força. Miserável memória que é a memória mais linda e mais preciosa que tenho. Miserável memória que me faz guardá-la naquela gaveta. A sete-chaves. Para ser tão mais difícil encontrá-la. Não posso espreitar. Não posso abrir. Não quero lembrar. Mas... como? Se nada quero com mais força?
Não sou eu que falo. Não sou eu que penso. Não sou eu que sonho. Sou eu que temo. E sou eu que choro. Sou eu que não sei e sou eu que me sinto sem ar para respirar e sem chão para pisar e sem uma mão para agarrar. Sou eu que quero mais que tudo ter alguém como te tive a ti, só para mim, para um momento que será como se fosse para sempre, porque então nenhum relógio funcionaria e o tempo não seria o tempo e tudo seria eu e tu. Nós. Alguém para amar.

quinta-feira

Uma divagação, afinal e apenas

Andando a vaguear pela blogosfera a espreitar umas coisas, eis que o tema surge (uma vez mais e quase "fora de moda"... odeio que lhe chamem modas) e entre opiniões diversas e mais absurdas me começo a sentir engasgada com qualquer coisa na garganta a querer sair cá para fora. Desculpem qualquer ridículo fruto do impulso. Serei até bastante imparcial no que digo, na medida em que o que digo pouco ou nada junta a algo que não advém da opinião, mas antes da realidade como ela é (ou devia ser) aceite nos dias de hoje.
Não, a homossexualidade não é uma doença. Mesmo.
Não, não se pega.
Não acredito que seja uma questão de opção (se bem que muito boa gente passa a vida a escolher aparentar ser o que não é, e geralmente isto nem tem nada a ver com a sexualidade/orientação sexual).
E não, um casal não tem de ser um conjunto de duas coisas diferentes.
Independentemente das circunstâncias em que tenha crescido, dos ensinamentos que tenha recebido, da sociedade na qual se tenha esforçado por se integrar, uma pessoa tem hoje liberdade e engenho para perante algumas observações questionar muita coisa. Ainda que isso possa incomodar alguém.

Do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (http://www.priberam.pt/DLPO), como poderia ser de outro qualquer:

casal
(latim casalis, -e, relativo à quinta, à casa)
s. m.
1. Conjunto de macho e fêmea. = par
2. Conjunto formado por marido e mulher.
3. Conjunto de duas pessoas que têm uma relação sentimental e/ou sexual.

[...]

casamento
(casar + -mento)
s. m.
1. Acto ou efeito de casar.
2. Contrato de união ou vínculo entre duas pessoas que institui deveres conjugais.
3. Cerimónia ou ritual que efectiva esse contrato ou união.
[...]

Já das definições da edição de 2001 do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa que ali mora na prateleira se pode perceber que o termo casamento não tem de contemplar obrigatória e exclusivamente pessoas de sexos opostos.
Pronto, já não me sinto tão engasgada. Às vezes pergunto-me "em que raio de época vim eu nascer?!". Provavelmente uma pessoa nunca encontra o seu lugar em lado nenhum. Nem o lugar nem o tempo. Que se lixe. Que eu não gosto de dizer palavras feias.

terça-feira

Quando for o tempo, não quero ficar só. Quero ter alguém que me aconchegue e que me mime. Quero não me sentir um estorvo. Não me sentir perdido. Nem me sentir apenas à espera do fim do caminho. Quero sentir o quente, a sensação da companhia de quem me quer só bem.
Incomoda tanto, aperta o coração. A solidão.

segunda-feira

Quatro pequenas paredes

Só, sempre só. Só na ânsia de te ver entrar pela porta adentro, olhar ausente, pensamento quente, gestos mecânicos cheios de vontade de parar. Parar e olhar e ver alguém a esperar.
Entra. Entra e olha. Olha e vê. Vê-me a mim, vê-te a ti, antes. Tanto tempo. Tempo? Que tempo? O que é o tempo? Coisa que passa… a correr, devagar… coisa que não existe. Entra. Entra e pára. Pára! Pára de pensar para pensar no que vês.
Atitude rotineira, chaves no chaveiro, casaco no cabide, passos pelo corredor – “Olá” – um beijo fugidio, uma figura cansada… passos para o escritório.
Passos que ecoam pelas paredes despidas de uma casa completamente vazia. Vazia de tudo o que um dia a perfez de luz e calor, escura e fria agora. Fecho os olhos, tento concentrar-me, “respira fundo” – diz uma voz interior.
Pasta na secretária, caminho até ao quarto, roupa no chão.
Outrora tão demorada, apaixonadamente…
Seguras o livro, pões os óculos, puxas uma almofada. Sentas-te no sofá exactamente em frente ao meu, embrenhado em histórias, fantasia e faz-de-conta.
Ausência de ti…
Levanto-me em direcção à cozinha, murmuro sugestões pelo caminho, sei que não obtenho resposta. Jantar pronto. Conversa de mesa, discurso banal, a comida acaba por perder o sabor. Jantar terminado – “Estou cansado”. Deitas-te e viras-me as costas, apagas o candeeiro e fechas os olhos. Terás alguma vez aberto a alma nestes últimos tempos?
Quero abanar-te, acordar-te, olhar-te nos olhos, fazer-te entender! Quero fazer-me sentir aqui, quero-te outra vez dentro destas quatro pequenas paredes que se tornaram tão vastas tal é a dimensão da distância entre nós.
Abraça-me. Mas abraça-me com força. Aperta-me para que eu me convença de que não foste embora, para que eu me convença de que não partiste para tão longe assim.
Beija-me. Mas beija-me com vontade. Faz-me fechar os olhos de encanto, para que eu saiba que não me deixaste esquecida, para que eu saiba que temos um lugar.
Deseja-me como nunca, para que possamos finalmente e de novo encontrar-nos neste mundo de mentiras e máscaras, para que possamos finalmente e de novo baixar as armas e descurar todas as defesas.
Ama-me sempre, para, quando aqui chegarmos mais uma vez, tornarmos tudo tão um conto de fadas e vivermos felizes (não para sempre, mas) como nunca.

quarta-feira

"Cidade

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes."

               Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira

"Quando a cabeça não tem juízo e te consomes mais do que é preciso"


"Quando a cabeça não tem juízo
Quando te esforças
Mais do que é preciso
O corpo é que paga
O corpo é que paga
Deixa-o pagar, deixa-o pagar
Se tu estás a gostar

Quando a cabeça não se liberta
Das frustrações, inibições
Toda essa força, que te aperta
O corpo é que sofre
As privações, mutilações

Quando a cabeça está convencida
De que ela é
A oitava maravilha
O corpo é que sofre
O corpo é que sofre
Deixa-o sofrer, deixa-o sofrer
Se isso te dá prazer

Quando a cabeça está nessa confusão
Estás sem saber que hás-de fazer
E ingeres tudo o que te vem à mão
O corpo é que fica
Fica a cair sem resistir

Quando a cabeça rola para o abismo
Tu não controlas esse nervosismo
A unha é que paga
A unha é que paga
Não paras de roer
Nem que esteja a doer

Quando a cabeça não tem juízo
E te consomes, mais do que é preciso
O corpo é que paga
O corpo é que paga
Deixa-o pagar, deixa-o pagar
Se tu estás a gostar
Deixa-o sofrer, deixa-o sofrer
Se isso te dá prazer"

quarta-feira

À caça de borboletas

Vimo-nos obrigados a chegar à conclusão que andamos toda a vida à caça de bonitas borboletas. E que toda a vida não passamos de feias lagartas. Ou pior, o mais longe que chegamos será ao estado de feias lagartas escondidas em casulos.
Por muito amorosas que possam ser algumas lagartinhas, as borboletas são seres graciosos, têm asas. As lagartinhas caminham pelo chão, tentam subir árvore acima até às folhas mais altas, e não passam daí. Não voam.
O que há de tão complicado em resolver o casulo?




quinta-feira

"Qualquer janela serve para voar"





Quando se tem muito tempo livre e pouca imaginação, ou alguma imaginação mas uma determinação ligeiramente tosca, acaba-se inevitavelmente a olhar para a parede como se não houvesse amanhã. E naquela parede passa tudo. Passam os sonhos, passam os dias, passa o tempo. Passa um mar de tudo o que se tem no pensamento, e pensa-se em tudo e mais alguma coisa. A roupa que se vai vestir amanhã, o local onde ficará a casa ideal, a pilha de loiça no balcão da cozinha, a frase feia e má dita no dia anterior a uma pessoa querida, tudo o que ainda falta fazer até se poder parar no sofá e não mais dali sair até se querer, sem se ser obrigado (reforma?! que provavelmente não será assim tão bom, não fazer nada). O filme da vida, a nossa e a dos outros, os dramas, as tragédias, as situações impossíveis de se resolver (que acabam sempre resolvidas), as festas, o brilho das datas especiais, as pessoas especiais, os enlaces e os laços. A razão de se existir. E o propósito de se ser.
O acto puro de pensar. Como quem não tem mais nada que fazer além de ficar especado a pensar para a parede. Tudo o que acaba por se pensar. Uma prisão grande o suficiente para que se oiça o eco do que se pensa. Um misto de cruz e de dom, um afinal "sumo agridoce".
Em vez de uma parede, porque não uma janela? Pelo menos pode sempre contar-se com ela... para voar! Aliviar a angústia de ter apenas uma parede para olhar. Esticar os olhos, espreguiçar as pálpebras e alargar as vistas. Que o que mais se vê, não está à frente dos nossos olhos. Está atrás deles. E quando assim se olha, é preciso muito mais espaço. Esquece-se então a parede, abre-se a janela e afasta-se a cortina e os cortinados. Que tem muito mais por onde reparar. Ainda que seja de noite, ou que se esteja nas traseiras de um prédio cuja vista se resume a tijolos vermelhos ou cimento por pintar. Porque aparece sempre um pássaro ou um insecto voador para fazer comichão na fotografia e emprestar as asas.
Qualquer que seja a janela, serve sempre para voar.

domingo

Qualquer pretexto serve para escrever


Que seja um pretexto mesmo fraquinho! Para que as expectativas para o resultado também não sejam elas muito cheias de força. E para que uma folha sirva apenas e só a sua função, que é a de consolar alguém só (será? a função assim ou o alguém só?). Que a razão aparente que se alega para encobrir o verdadeiro motivo por que se fez ou deixou de fazer alguma coisa não seja aqui importante. E que não se dê importância nem ao motivo verdadeiro, nem ao falso motivo. Para que apenas se olhe. E para que os olhos executem apenas e só o seu exercício, que o de ver os ultrapassa. Não se queira, portanto, ver o que não é suposto ser para ser visto. Não se sinta aquilo que não nos pertence. Dê-se somente a liberdade a quem a solicita de mansinho, como quem não quer ou não sabe que anseia pela coisa, ou não sabe pelo que anseia, simplesmente.
Porque qualquer pretexto serve para escrever. E porque lá por se encontrar escrito não quer dizer que tenha de se ler.