sábado

Algo desencantado do fundo da gaveta

O que resta da fogueira na praia. A manta na areia. O marejar. O vai e vem de cada onda. A areia molhada debaixo de mim. O céu a clarear, alaranjado, por detrás do rochedo, preto da noite. A gaivota que chamava alguém. As estrelas que teimavam em espreitar o dia. A lua que não queria ir embora. O ar gelado na minha cara. O sal de água que não era do mar mas de mim. A falta da tua força em minha volta. Fazes-me tanta falta. O teu sorriso. A tua presença. O teu cheiro. Os teus olhos dentro dos meus. Os teus braços colados a mim. As tuas mãos. Tu.
Miserável memória que “teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar”. Miserável memória que me faz sonhar contigo muitas vezes. Miserável memória que teima em ficar. Miserável memória que guardo com tanta força. Miserável memória que é a memória mais linda e mais preciosa que tenho. Miserável memória que me faz guardá-la naquela gaveta. A sete-chaves. Para ser tão mais difícil encontrá-la. Não posso espreitar. Não posso abrir. Não quero lembrar. Mas... como? Se nada quero com mais força?
Não sou eu que falo. Não sou eu que penso. Não sou eu que sonho. Sou eu que temo. E sou eu que choro. Sou eu que não sei e sou eu que me sinto sem ar para respirar e sem chão para pisar e sem uma mão para agarrar. Sou eu que quero mais que tudo ter alguém como te tive a ti, só para mim, para um momento que será como se fosse para sempre, porque então nenhum relógio funcionaria e o tempo não seria o tempo e tudo seria eu e tu. Nós. Alguém para amar.

quinta-feira

Uma divagação, afinal e apenas

Andando a vaguear pela blogosfera a espreitar umas coisas, eis que o tema surge (uma vez mais e quase "fora de moda"... odeio que lhe chamem modas) e entre opiniões diversas e mais absurdas me começo a sentir engasgada com qualquer coisa na garganta a querer sair cá para fora. Desculpem qualquer ridículo fruto do impulso. Serei até bastante imparcial no que digo, na medida em que o que digo pouco ou nada junta a algo que não advém da opinião, mas antes da realidade como ela é (ou devia ser) aceite nos dias de hoje.
Não, a homossexualidade não é uma doença. Mesmo.
Não, não se pega.
Não acredito que seja uma questão de opção (se bem que muito boa gente passa a vida a escolher aparentar ser o que não é, e geralmente isto nem tem nada a ver com a sexualidade/orientação sexual).
E não, um casal não tem de ser um conjunto de duas coisas diferentes.
Independentemente das circunstâncias em que tenha crescido, dos ensinamentos que tenha recebido, da sociedade na qual se tenha esforçado por se integrar, uma pessoa tem hoje liberdade e engenho para perante algumas observações questionar muita coisa. Ainda que isso possa incomodar alguém.

Do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (http://www.priberam.pt/DLPO), como poderia ser de outro qualquer:

casal
(latim casalis, -e, relativo à quinta, à casa)
s. m.
1. Conjunto de macho e fêmea. = par
2. Conjunto formado por marido e mulher.
3. Conjunto de duas pessoas que têm uma relação sentimental e/ou sexual.

[...]

casamento
(casar + -mento)
s. m.
1. Acto ou efeito de casar.
2. Contrato de união ou vínculo entre duas pessoas que institui deveres conjugais.
3. Cerimónia ou ritual que efectiva esse contrato ou união.
[...]

Já das definições da edição de 2001 do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa que ali mora na prateleira se pode perceber que o termo casamento não tem de contemplar obrigatória e exclusivamente pessoas de sexos opostos.
Pronto, já não me sinto tão engasgada. Às vezes pergunto-me "em que raio de época vim eu nascer?!". Provavelmente uma pessoa nunca encontra o seu lugar em lado nenhum. Nem o lugar nem o tempo. Que se lixe. Que eu não gosto de dizer palavras feias.

terça-feira

Quando for o tempo, não quero ficar só. Quero ter alguém que me aconchegue e que me mime. Quero não me sentir um estorvo. Não me sentir perdido. Nem me sentir apenas à espera do fim do caminho. Quero sentir o quente, a sensação da companhia de quem me quer só bem.
Incomoda tanto, aperta o coração. A solidão.

segunda-feira

Quatro pequenas paredes

Só, sempre só. Só na ânsia de te ver entrar pela porta adentro, olhar ausente, pensamento quente, gestos mecânicos cheios de vontade de parar. Parar e olhar e ver alguém a esperar.
Entra. Entra e olha. Olha e vê. Vê-me a mim, vê-te a ti, antes. Tanto tempo. Tempo? Que tempo? O que é o tempo? Coisa que passa… a correr, devagar… coisa que não existe. Entra. Entra e pára. Pára! Pára de pensar para pensar no que vês.
Atitude rotineira, chaves no chaveiro, casaco no cabide, passos pelo corredor – “Olá” – um beijo fugidio, uma figura cansada… passos para o escritório.
Passos que ecoam pelas paredes despidas de uma casa completamente vazia. Vazia de tudo o que um dia a perfez de luz e calor, escura e fria agora. Fecho os olhos, tento concentrar-me, “respira fundo” – diz uma voz interior.
Pasta na secretária, caminho até ao quarto, roupa no chão.
Outrora tão demorada, apaixonadamente…
Seguras o livro, pões os óculos, puxas uma almofada. Sentas-te no sofá exactamente em frente ao meu, embrenhado em histórias, fantasia e faz-de-conta.
Ausência de ti…
Levanto-me em direcção à cozinha, murmuro sugestões pelo caminho, sei que não obtenho resposta. Jantar pronto. Conversa de mesa, discurso banal, a comida acaba por perder o sabor. Jantar terminado – “Estou cansado”. Deitas-te e viras-me as costas, apagas o candeeiro e fechas os olhos. Terás alguma vez aberto a alma nestes últimos tempos?
Quero abanar-te, acordar-te, olhar-te nos olhos, fazer-te entender! Quero fazer-me sentir aqui, quero-te outra vez dentro destas quatro pequenas paredes que se tornaram tão vastas tal é a dimensão da distância entre nós.
Abraça-me. Mas abraça-me com força. Aperta-me para que eu me convença de que não foste embora, para que eu me convença de que não partiste para tão longe assim.
Beija-me. Mas beija-me com vontade. Faz-me fechar os olhos de encanto, para que eu saiba que não me deixaste esquecida, para que eu saiba que temos um lugar.
Deseja-me como nunca, para que possamos finalmente e de novo encontrar-nos neste mundo de mentiras e máscaras, para que possamos finalmente e de novo baixar as armas e descurar todas as defesas.
Ama-me sempre, para, quando aqui chegarmos mais uma vez, tornarmos tudo tão um conto de fadas e vivermos felizes (não para sempre, mas) como nunca.

quarta-feira

"Cidade

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes."

               Sophia de Mello Breyner Andresen