Janela para voar
sábado
Da varanda vês o pôr-do-sol
Da varanda vês o pôr-do-sol. E não acreditas que durante mais de vinte anos o tenhas esquecido. Entre este fim de Verão e início de Outono, o Sol segue aquele arco que o deixa cair atrás do montado, com o amarelo-laranja quente recortadinho pelas ramagens dos sobreiros lá ao fundo, naquela nesga mesmo entre os telhados das casas dos teus vizinhos da frente. Como é possível que durante tanto tempo não o tenhas vindo ver?! Semicerras os olhos e a luz brilha nas tuas pestanas. E a tua pele aquece. Deixas-te ficar um bocadinho a absorver a energia. Tanto calor que estranhas. Já o Sol se põe e ainda assim não corre uma brisa. Acenas e despedes-te. Amanhã ainda terás mais dia que noite. Depois, será sempre a decrescer. Vale sempre mais, quando o vês tão perto de se ir embora.
domingo
Desces a rua
Desces a rua alheada. Do tempo, da chuva, do frio, do apito do comboio. Do autocarro que sobe, da mulher com mil sacos do supermercado. Revês mecanicamente os gestos de um dia robotizado. Tanto que esboças largos, lentos, difusos movimentos no ar, imitando as horas que nunca chegam ao fim. Diluis operações pelas horas fora, incapaz de lhes pôr um fim. Vai para casa! Manda um berro pelo caminho! Expulsa esse demónio! Relaxa... Mas dás por ti, a tua porta já passou. Parece que nem sabes já onde moras. Onde vives?
segunda-feira
Sopa de nabiças
quinta-feira
Geadas
E assim frios se tornam os dias. Sozinhos, um a seguir ao outro, mas sem alento. Como que não suficientes para encher o tempo. Desligados, alheios uns dos outros. Porque se encolhem tanto quanto o frio os aperta em si mesmos. Cada vez mais estáticos, no pequeno tremelique que lhes faz ranger e bater os dentes madrugada fora.
Vamos, vem aquecer-me os pés. Que sem pés quentes não consigo adormecer. E sem dormir assisto a este desligamento dos dias. E assim se me desliga a mente. Vagueio entre um e outro dia, naquele segmento dúbio do tempo que está entre os tempos de verdade. Quando nada acontece e tudo se vê acontecer. Sem saber se de facto é real. Porque nos interstícios do tempo é quando a realidade às tantas é mais livre de se manifestar. É quando, perdidos no tempo que não é tempo, entre o que é tempo a sério, a tolerância se alia à ausência de restringência. É quando os olhos mais se abrem para deixar entrar mais luz, até do mais pequeno pormenor.
sábado
Assador de castanhas
domingo
Mudança de energia
Pensei em cabelos fora dos penteados, vestidos esvoaçantes, velhos a segurar as boinas para que não fujam, castanhas folhas a fugir de montes ao longo do passeio. Panos a saltar das molas nos estendais, sacos de plásticos a elevar-se no ar. Pensei que todos me lembravam esforço. O esforço de contenção, contrariado pela força do ar que corre no vento. Ninguém se quer perder no meio da tempestade. Ninguém se quer ver desaparecer. Toda a gente se segura em si, com determinação. Conscientes do seu objectivo.
Lavei a cara com a frescura que anuncia o fim do tempo quente. Fechei a janela para que o conforto do quarto me voltasse a abraçar. Voltei a deitar-me e desta vez puxei para mim o edredão entretanto abandonado aos pés da cama. Dormi. É vento lá fora. E chuva e frio e corpos rijos com medo de perder a energia. É tempo de ir buscar energia a outro lado.
quarta-feira
Pequenice
Quando és pequeno, há um número infinito de países neste mundo, que é impossível saber o nome deles todos. Há tantas pessoas à face do globo que tens a certeza de pelo menos uma estar a fazer exactamente o mesmo que tu em cada momento. Os rabiscos nas folhas dos teus cadernos são para ti os mais eloquentes ensaios. E todas as superfícies são boas para gravares o teu nome, ainda que uma ou mais letras fiquem escritas do avesso. Sabes que a casa de uns dos teus avós é suficientemente longe para as visitas terem de durar pelo menos um dia inteiro e para o Natal ser passado lá todos os anos. Não tens noção de quanto mede um mês, nem sequer uma tarde. Voltas para casa quando escurece, ou quando alguém berra o teu segundo nome a seguir ao primeiro. A tua casa é a rua inteira e ainda a paralela para a qual tens acesso pelo terreno em obras intermináveis. Quando és pequeno, sabes que a certa altura a tua mãe vai aparecer no quintal com um tabuleiro cheio de sandes de manteiga e fiambre, um jarro de limonada e gelo acompanhado de meia dúzia de copos desirmanados e uma taça de cubos de melancia fresca. A única coisa que conheces acerca de gasolina é o cheiro do carro do teu pai. Medes as estações do ano pela orientação e tamanho da sombra do telhado no chão. E até achas que o Verão dura mais do que todo o tempo escolar. Queres adoptar todos os gatos que encontras na rua. Andas descalço todo o dia. Gritas, ris, sobes às árvores, esfolas os joelhos, choras, fazes birras. Lambuzas-te com as torradas grossas com azeite e açúcar e as bolachas maria barradas com manteiga que a avó te prepara. Reconheces o som das canadianas do teu avô e segue-lo para a horta à hora da rega. Quando és pequeno, estas e outras experiências parecem não ter lugar no tempo. Parecem eternas. E não o são?
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