sexta-feira

Amanhã

Lá fora chove sem parar desde há muito tempo. Tanto que sou incapaz de saber dizer quanto. Está frio há ainda mais tempo. Muito frio. Por melhores amigos, os cobertores que fui descobrir no sótão, guardados ao fundo do armário da roupa que já não uso. Sei que grande parte do dia vou estar enroscada no sofá da sala. Olhos vidrados na imagem de uma televisão que já só faz ruído, barulho, nada mais me diz. Vou pouco a pouco esvaziando garrafas cheias de compaixão. Enfardo chocolate como se amanhã proibissem a importação deste poderoso analgésico do coração. É mais fácil induzir este estado em que não consigo absorver a realidade, em vez de ultrapassar aquela terrível barreira entre o saber o que seria a atitude correcta e tomar de facto com toda a força de vontade possível a decisão de a levar adiante.
Por mais que me obrigue a concentrar no pensamento de que sozinha sou completa, sou plena e feliz. Sabia que quando fosses embora ia olhar em volta e pensar na dimensão desta casa. Nota mental: de futuro, alugar apartamentos pequenos - é mais fácil manter a arrumação e a limpeza, e é mais simples preenchê-los, de objectos e de vida.
Agora tudo está longe. O escritório está longe. (As datas de entrega dos relatórios pendentes nem por isso...). A cozinha está longe. (Custa menos pegar no telefone e mandar vir comida pronta). A porta está longe. (Juro que por vezes quando me apercebo que é a minha campainha a tocar, já quem tocava desistiu que alguém fosse abrir). O quarto está longe. (E o teu odor no meu colchão continua teimosa e assustadoramente perto, apesar de ter mudado e lavado lençóis milhentas vezes desde que saíste e não voltaste).
Vou deixar-me estar só mais um dia no sofá. Pior não vou ficar. Melhor provavelmente também não. Amanhã talvez saia de casa. Quanto tempo será que pode dar-se a um desgosto, antes que ele nos domine de vez?! Acho que vou mandar vir chinês. Amanhã saio de casa.

sábado

Doce de ovos

O doce de ovos evoca em mim a memória da croissanterie e o cheiro da massa a cozer no forno. As conversas animadas e as gargalhadas entre amigos à volta das mesinhas de tampo de pedra nas cadeiras de metal vermelhas. Mesmo que o quotidiano esteja repleto de pequenos gestos doces, estamos sempre a exigir mais e mais do que e de quem nos rodeia. A velha história do quanto mais tens, mais queres ter. Por isso, e como a cozinha é sempre uma grande ajuda terapêutica... Bata quatro gemas com duzentos e vinte e cinco gramas de açúcar; ferva uma chávena de chá de leite num tacho; junte as gemas com o açúcar ao leite e mexa sem parar; quando começar a espessar estará pronto. Este pode ser o ponto de partida para um bolo que precisa de recheio, ou para uns crepes que precisam de ânimo. Para uma viagem de fechar os olhos, inspirar e recordar momentos distantes cheios de açúcar.

sexta-feira

Mais vale voar com os pássaros

Mais vale voar com os pássaros, do que ver dois pássaros a voar, ou mesmo ter um pássaro na mão.

quinta-feira

Vai andando

Vai andando, vai andando... Quase, quase a chegar! A sensação de plenitude da tarefa concluída tarda em vir. Há uma arte que é uma mescla de preguiça, falta de vontade e desleixo, cuja primeira regra (e última, talvez) se resume ao deixar andar até que não possas mesmo ignorar o que tens que fazer. Irresponsabilidade? Não a queremos encarar assim... Não, nós temos sempre tudo controlado, há tempo! Há sempre tempo. Até ele começar a escassear. Incompetência? Longe de nós! Não se vê que vai tudo estar pronto a horas?! Pensamos que provavelmente a aversão a dar a coisa por terminada tem mais a ver com o facto desta não se incluir na nossa área de preferências. Talvez seja até muito desprovida de interesse, no geral. Acabamos por concluir que passamos mais tempo a procurar desculpas e argumentos para nos lamentarmos, do que propriamente a despachar o penoso encargo, para que o vejamos atirado para trás das costas.  E acabamos a arrastar o que podíamos bem já ter dado por terminado há muito, e a ver as horas de sono diminuírem com a aproximação da deadline a cumprir. E até ao limite, tem de haver sempre alguém a perguntar "Então, como vai isso?". Vai andando...