terça-feira

Entre!


Quando dou por mim sozinha, é como se estivesse sempre à tua espera. Sonho acordada com episódios em que entras pela porta adentro de surpresa.

      ( - Entre!)

Imagino a sensação de imprevisto que me assaltaria, me deixaria gaga nos reflexos, sem saber bem que dizer. Invento as palavras que trocaríamos numa situação em que isso acontecesse. Crio os gestos que cortariam o ar, parado antes de chegares. Aproximar-te-ias, tentarias alcançar-me a mão, talvez abraçar-me, provavelmente oferecer-me um beijo. Eu, derretida, todo o meu corpo esboçaria o seu sorriso, tímido.

      ( - Fica.)

Antes de avançar no enredo, já partiste. De novo. Dentro da minha cabeça já se desvaneceram estas ideias e se formaram outras, nuvens, flutuantes atrás dos meus olhos. Abertos mas fechados.
Oh, como sinto a tua ausência! Tanto como a tua presença, ela dilacera-me a existência. Afasta-me do que é real. Deixa-me assim alheada, incapaz. Rosto cerrado. Inspiro e mantenho o ar dentro dos pulmões, para parar o tempo um bocadinho. Puxo facilmente a memória do teu aroma. Rapidamente me vejo, uma vez mais, enleada em ti. Abandono-me e deixo-me ficar tanto tempo quanto conseguir. Sabe bem saborear-te.

segunda-feira

Mergulhar de cabeça


Quando era pequena eram muitos primos todos em casa dos avós no Verão. Era tão fácil descer a rua e pisar a areia a escaldar, saltar até ao mar e ficar assim o resto do dia. Até que nos chamassem para lembrar que sem comer não se consegue correr, e eventualmente toda a gente precisa de dormir. O areal permanecia praticamente deserto, ainda. E era então que o rochedo parecia mais alto. Ignorava-se muitas regras, mas aquela talvez fosse a mais perigosa para se desobedecer. Faziam fila para saltar, sem pensar se a profundidade seria suficiente naquele local, ou sequer se o mar não estaria agitado demais naquele dia. Era bom sentir aqueles escassos instantes de liberdade pura, em que se era capaz de voar. Gritava-se ao vento e às gaivotas, que já não estavam em posição de se invejar, já tinham sido superados. Aves no ar, peixes na água. Três meses que enquanto não acabavam, duravam para sempre. Havia sempre tempo para mais um mergulho, mais uma corrida, mais uma brincadeira.
Crescemos e ao mesmo tempo que ganhamos a noção da altura do rochedo, perdemos a coragem necessária ao salto. Ficamos limitados à prisão dos pés juntos, pernas flectidas, costas curvas, braços para a frente ao lado da cabeça e respiração sustida, sem conseguir dar o balanço que nos projecta azul após azul. Hoje, estamos de pé na rocha, já nem nos curvamos numa tentativa frustrada de quem ainda pensa ser capaz. Eventualmente, um dia sentar-nos-emos em círculo, contando histórias das vidas entre Verões. Nunca estaremos tão alto como nesse dia. O dia em que, de tão grande a altura, será maior o medo de cair.

sexta-feira

Feto


Quiçá tudo na vida surge lenta e cuidadosamente como o desabrochar das folhas dos fetos. Um movimento gracioso, qual passo demorado num bailado. Será tão só uma questão de perspectiva. O intervalo que decorre do nascimento à morte de um ser varia grandemente consoante o ser que se considerar. Em momentos de aflição tudo parece passar à frente dos olhos em câmara lenta. Por outro lado, quando mais nos apetece estender os minutos, eis que é aí que eles mais correm para fugir. As escalas de tempo são tão relativas...