sábado

Para lá da fronteira

Quando não há Lua, há um sítio onde o céu fica com muito mais estrelas. Quando ela entrava pelo portão enferrujado e perro que outrora fazia as vezes de barreira para esse mundo fantástico, fundia-se com a escuridão, deitava-se na erva fofa e contemplava a abóbada de astros cravados no breu. Estava frio, de noite, mas as aves nocturnas piavam e os insectos apresentavam monótonas mas brilhantes sinfonias de efeitos hipnóticos. Cheirava a terra molhada e flores silvestres e na língua a humidade do ar denunciava a acidez das formigas em carreiros. As cascas das árvores eram rugosas e quentes e as folhas dos arbustos lisas e frescas. Guardavam o sol ardente das horas de luz e a brisa que passava leve ao anoitecer. Joana abria tanto os olhos e não via nada. Os outros sentidos valiam-lhe por tudo.
Quando trespassa o portão velho e já sem tinta, tem de se baixar para não bater com a cabeça nos ramos do grande castanheiro da entrada. E embrenha-se num bosque de duendes e fadas escondidos em cada canto. Flores exóticas e garridas a ladear o caminho, ao abandono, em luta desvantajosa com silvas carregadas de amoras e outras ervas daninhas. Corre, agora, tropeça nos próprios pés, atrapalhada de ansiedade. Detém-se de repente, respiração acelerada, cabelo revolto, arranhões nas pernas descobertas pela saia curta. No fim do caminho de pedra encontra-o, sempre no mesmo local, na mesma posição. Mente ausente e à espera. Está escuro, não há Lua, mas ela sabe que é ele. Ninguém mais conhece o lugar. Ninguém esperaria por ela assim. E a noite de Verão ganha um outro calor. No silêncio dos dois, ouvem-se os grilos e as cigarras e o vento entre a folhagem. Depois, ficam as estrelas no alto, vigilantes até amanhecer.
Mais ninguém viria a saber destes encontros. Como se nunca tivessem acontecido. No fim das contas, provavelmente não passaram mesmo da esfera do sonho. Como as memórias que de tão longínquas e gastas perdem contornos e nitidez. E chega um dia já não são memórias, são algo que não sabemos dizer o que é, e que nunca poderemos perguntar a ninguém se foram mesmo verdade, se tiveram lugar real alguma vez. É por isso que Joana continua a correr noite adentro entre a densa vegetação abandonada à sorte da rebeldia selvagem. E é assim que volta a encontrá-lo de todas as vezes que ali se encontra. E não importa a quantidade de tempo que se desenrolou entretanto, nem o domínio do caos sobre o antigamente belo jardim. Ele continua a esperá-la nas noites sem luar.

quarta-feira

Chegada à Partida

À partida, recordo a chegada. A luz que sobe recorda-me a luz que desce. E o branco do ar remete-me para o amarelo e laranja, quente e frio a anunciar o fim do dia. Às vezes uma neblina suave flutua por cima do arroz. Que vai de verde a castanho antes de darmos por isso. E não tarda já é Verão outra vez. Porque cada sexta-feira de volta a casa a luz desce mais tarde no dia. E a noite demora mais a chegar.
A paisagem aconchega, oferece sensações de tempos que passaram e tem premonições do conforto do colo de quem nos criou e, de qualquer maneira, há-de criar o resto da vida.
Em pouco tempo, entre o sair da estrada nacional e o passar pelo antigo campo de futebol, o cemitério e o velho depósito da água, vejo sobreiros majestosos, vinha mais recente, o percurso do rio acompanhado de salgueiros-chorões com os seus ramos caídos despidos pelo Inverno. Vejo umas ruínas de casas, coroadas de ninhos de cegonhas, que batem o bico em efusiva conversa e das quais distingo a silhueta recortada pelos últimos raios de sol. A várzea, pintalgada de aves brancas que procuram na terra húmida por larvas e minhocas e insectos, termina onde se erguem os montes verdejantes de erva que gosta da chuva. Há um pequeno lago perto das pontes onde nadam alegremente patos e seus patinhos, de plumagem bonita, preta, verde e castanha.
E este cenário aquece-me e traz-me imagens rápidas e em maioria desfocadas de mulheres de cabelo brancos vestidas de preto, hortas com carreiros de couves, galinhas e ovos nos seus galinheiros, e árvores de fruto. E a terra molhada. A lareira acesa. A cozinha e a comida. As caras familiares. A família. As ruas e os velhos nas suas bicicletas.
À partida, lembro-me sempre da chegada. E guardo esse pensamento para me ir lembrando dele durante a semana, até à chegada seguinte.