sábado

Nevoeiro e perlimpimpim

Há quem na cabeça tenha não mais do que farinha espalhada por um sopro de crianças traquinas, calda de açúcar e pintarolas de muitas cores. Serpentinas e fitas de Carnaval, purpurina, tules e varinhas que tudo fazem acontecer. Estrelas e coisas brilhantes, torres de castelos com janelas pequenas no alto, dragões e espadas e fadas e luz. E fogo. E dentes afiados e monstros gelatinosos. Foguetões e trapézios e narizes vermelhos. Orelhas bicudas e bochechas rosadas. Asas e penas e caudas compridas. Hoje sou assim. Amanhã não sei que serei. Ontem já passou. Fui à Lua, salvei o Mundo. Hoje corro em câmara lenta à frente dos meus olhos na pele de outro ser pequenino. Com os joelhos esfolados, as mãos cheias de terra e expressão de quem sabe que não engana ninguém, mas e então? Hoje, é pecado sentir-me ainda assim? Porque parece a todo o momento que está alguém a olhar para (por) mim pronto a censurar-me (amparar-me)? Grilinhos que falam de mãos em concha à volta da boca para dentro dos nossos ouvidos, irritados. É quando se cai de cu no chão e o sorriso malandro vira pranto ao vento e tudo perde nitidez. A fantasia enrola-se no ar em fumos de tons azuis, roxos, rosa e prateados, pelo caminho adiante par a par com o real. Vejo os meus pés um à frente do outro, mas não vejo o caminho. Brumas e escuro e minúsculas gotas de água suspensas em redor dos corpos. E frio. Não somos capazes de perceber a fronteira, ou sequer de ultrapassá-la. Não podemos alhear-nos para sempre, nem voltar para trás, a estrada que conhecemos já não existe. Devia haver uma solução mais óbvia para os dias de nevoeiro.

O frio ainda vem longe


Há folhas no chão, há correria de pessoas, há casacos assim-assim. A romãzeira já tem fruto e já comemos batatas doces. Há cogumelos a crescer no jardim e quem come as uvas são os insectos lá fora. As laranjas ainda estão verdes, assim como os ouriços das castanhas. Já tirámos as mantas do armário e trocámos o cobertor leve pelo edredão. Mas ainda não há terra molhada, nem névoa matinal que se veja, ainda não cheira a lenha nem se ouve o crepitar do lume na lareira. À noite fazem 17 ºC e de dia, ao sol, tenho vontade de despir a camisola. O frio ainda vem longe.
De qualquer forma, as folhas que caem uma a uma ou mais de uma vez hão-de amontoar-se, as pessoas hão-de correr cada vez mais depressa para o conforto do interior de cada casa, e os casacos dia a dia hão-de pesar cada vez mais nos ombros de cada um. Podemos adivinhar o cheiro das laranjas melhor a cada dia que elas ganham mais um pouco de cor. Para quem quiser há já castanhas à venda no mercado, hão-de vir a pouco e pouco acompanhar as batatas doces na cozinha lá em baixo. Com a luz do fogo chega também a água a ferver da botija para aquecer quem não consegue dormir de pés mais e mais gelados. Cada sol que nasce traz manhãs menos quentes e cada lua que desce leva mais do entusiasmo do sol. As coisas verdes ficam cor-de-laranja e vermelhas e amarelas e castanhas e pretas. E morrem. Outras nascem.
Assim, devagarinho, quase sem darmos conta. Eis que ele vem. O frio ainda vem longe. Mas vem. Preparemo-nos, então.

Algo desencantado do fundo da gaveta II

Estou cheia. Continua a faltar quem me fará transbordar. Ingrata? Egoísta? Parva? Deprimente... Olhas à volta e vês tudo. Olhas para dentro e vês nada. Fugir? Não fujas, corre! Não és capaz de sair do sítio. Esse leito de sal agrada-te, o teu prazer de não sorrir, o teu prazer de gritar, o teu prazer de agonia. És deprimente. Admite-o. E vive para sempre no teu mar sem ondas e sem barcos e na tua praia com pegadas de ninguém.

"Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não."

(José Saramago, in Memorial do Convento)

sexta-feira

Sensação do espaço e do tempo

Os cortinados daquela janela, apesar de compridos, estão curtos, não chegam ao chão. Parece que têm a saia arregaçada. Como eu quando, contigo e as tuas calças arregaçadas também, saltava por cima das pedras escorregadias, verdes, brilhantes de musgo e algas e vida. Para atravessar até à outra margem. Quando perdi o equilíbrio caí e levei-te comigo, mãos dadas. A saia que se enrolava em mim e em ti molhada e as voltas que dávamos em torno de nós. Eram as voltas que os cortinados davam em nossa volta. Perdidos pelo chão, encontrámo-nos e perdemo-nos um ao outro. Ficámos tantas vezes deitados, calados, olhos no céu. Muitas vezes a sensação de se estar próximo é mais forte quando se está longe. Quando se está perto, a proximidade perde-se, é tão fácil tocar-se e ver-se e ouvir-se e cheirar. A facilidade torna tudo isto menos valioso. A distância aumenta a vontade de retornar, de correr, de ter. Como o potencial electroquímico na origem dos processos fisiológicos na base do desenrolar da vida dos corpos. É a distância que nos faz querer tomar os corpos dos outros nos nossos braços. Uma vez nos nossos braços, parece não ter tanta importância o tempo que neles ficam. É sempre mais importante que fiquem mais tempo, quando esse tempo não está a acontecer agora. Eu, porém, mal te toco, já está a minha ideia na ideia de estares a descer no elevador, com a mochila às costas e com a cabeça no que vais fazer a seguir. Mal te tenho, no instante imediatamente seguinte para mim já estás a partir, já me sinto longe outra vez e ainda não me deixaste. Antecipo o último beijo, desde o primeiro que me dás. Vai, vai embora. Vai, que um dia vai parecer que nunca vieste. Vai parecer que nunca aqui estiveste. Se esse dia for tão doloroso como pressinto…