sexta-feira

Realidades paralelas

Realidades paralelas, fantasias simultâneas. Ou desvarios da mente, lembranças, uma intercepção de vidas passadas, diferentes, longínquas em natureza e no tempo. Alturas passamos, ou instantes apenas, talvez pequenos intervalos durante os quais é complicado discernir, definir o que pensamos, o que sentimos. Decidi sem grande ponderação que tinha de escrever sobre isto. Porque ao olhar para o caminho através do qual andei, reparei de novo que todo ele era lama cheia de poças moldadas pela passagem de gente, e rastos de pessoas e pegadas de animais. Depois, pensei que mais do que nós marcarmos o caminho, é o caminho que não nos deixa nunca, uma vez percorrido. A expressão dita para trás das costas é muito estranha de se dizer. Ou sou eu que terei uma forma esquisita de a sentir. Ou (mais provável será que) toda a gente a sinta igual, mas faça por não o dizer. Hoje esse caminho desapareceu. Permanecem apenas, a esforço de algumas pessoas, os sobreiros centenários que o ladeavam. Dilacerado, enterrado, tapado com alcatrão. Quem não o conheceu, não conhecerá. Quem o conheceu, não o reconhecerá quando por ele voltar a passar. Os sobreiros fazem hoje e pelos dias fora sombra a outras aventuras. Outras pessoas vaguearão debaixo deles. Outros rumos, outros destinos. Vento quente na camisa leve e solta, sol e sorriso na cara. O som das gargalhadas, a terra nos pés e os pés nos pedais. As rodas em grande velocidade, numa bicicleta voadora, máquina do tempo e elevador até ao espaço, até onde se quisesse. A luz cálida dos momentos em que esperávamos que se pusesse o sol, bela, entrava onde conseguia, passava pelas pequenas folhas que numerosas cobriam os ramos fartos daquelas árvores tão imponentes. Os teus olhos castanhos ficavam ainda mais suaves, e mais profundos e escuros e sombrios. Parecias olhar o vazio, qualquer pessoa diria que olhavas o vazio. Eu saberia porém dizer o que olhavas. Tempos perdidos, horas distantes, coisas que não sabias explicar. Mas que vias com maior ou menor nitidez. Nunca à frente dos teus olhos, sempre atrás. Fugiam atrás umas das outras, memórias de momentos e pormenores que nunca viveste. Mas que, magicamente, possuías. Eram propriedade tua, eram reais, tinham lugar em ti. Não quero nem ousarei nunca chamar-lhes imaginação. Ficava deliciado a olhar para ti quando assim ficavas a fitar um ponto ao acaso. E, através dos teus olhos, via um fio sem fim de imagens que se sucediam agora não na tua cabeça, mas na minha. E, maravilhado, não tentava sequer compreender. É, és um maravilhoso mistério. Feito de fartas e bonitas saias, saiotes e cetim. Tranças e apanhados com flores e coroas e fitas brancas e cor-de-rosa no cabelo. A tua cara branca, lábios de cereja madura, doce, doce. Naquele caminho, cheio de lama e de raios de sol de fim de tarde e ladeado de cerca de madeira e sobreiros alinhados, a separar olivais a perder de vista, e a erva rija e alta que deles saltava, rebelde.

domingo

Fantasmas

 Penso que pensarei um pouco por toda a gente, quando por razão aparentemente inexistente me assalta a mente um episódio mais inglório de entre aqueles que já vivi. Tenho até alguns acontecimentos de estimação que me revisitam sem quererem desaparecer. Teimosos despropósitos, disparates, desequilíbrios, e tão simples azares. Ridículos vergonhas e embaraços, casos desprovidos de todo a sensação de orgulho que pudessem despertar. Quanto mais esforço recebem para partir, com mais força ficam. São coisas pequenas, sem importância. Porque permanecem? Terão um significado profundo por trás da sua insignificância? Valerá a pena insistir na lembrança, valerá ainda mais dissecá-la em busca de um sentido maior, disfarçadamente oculto, potencialmente crucial? Que faria então os fantasmas maiores, e os fantasmas reis do nosso passado... Erros ditados incorrigíveis pelo tempo que não pára e pelas cartas que não voltam ao baralho antes de se darem as mãos e o fim do jogo. Arrependimentos, remorsos guardados, mágoas choradas até à exaustão do adormecer para acordar frente a um espelho que mostra apenas uns olhos mais inchados que os do dia anterior. Contas feitas, provavelmente o melhor é mesmo continuar a tentar dar-lhes menos e menos atenção. Pessoas assombradas não vivem felizes. Talvez o empenho na tentativa da ignorância vá atenuando o efeito do assombro. Quando damos por nós, já temos um fantasma diferente. E o anterior ficou há muito para trás. Muito mais leve. Cada vez menos assustador, muito menos importante. E a maior desgraça dilui-se em partículas tão ténues quão flexível se torna a nossa atitude perante o que representam. E assim se ultrapassavam dissabores e se assustam fantasmas. Parece tão simples, no fim, que devia ser proibido dizê-lo em voz alta.